quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O lado antropólogo do diabo


Quando tu passas a morar em outra cidade é comum vir um choque inicial. Esse choque tende a ser bastante variável, podendo se expressar de forma mais clara nas diferenças dos traçados urbanos, arquitetura, estrutura comercial, trânsito, etc. No entanto, particularmente o que mais chama a atenção são os costumes, as formas com que os moradores se relacionam com a população e a própria cidade. Embora nem sempre incorporando as tradições e o jeito de ser dos moradores do novo habitat, é comum acabarmos nos acostumando com tal. Com o tempo, aquilo que antes estranhávamos e olhávamos como algo de “outro mundo”, torna-se habitual, pouco chamativo. 
Passei por tal processo em Montevidéu (com morada mais curta) e Pelotas (alguns bons anos na conta), antes de retornar à Cidade do Rio Grande. Neste último sábado, fiz uma rápida passagem por Pelotas, o que suficiente para ter uma espécie de deja vu da minha antiga mudança para essa cidade. Não há como negar: existe uma boa diferença entre o “ser pelotense” e o “ser riograndino”. Essa clara diferença se torna ainda mais latente quando tratamos das classes mais abastadas de ambas as cidades, da “nata”, da elite “vipiana” (ainda não há imposto para quem cria palavras). Isso não quer dizer que uma é melhor ou pior que a outra, mas elas se diferem na forma como se (re)apresentam e se relacionam com os pares ou com as classes inferiores. Isso é fato! Algo perceptível mesmo aos olhos mais desatentos.
Vamos aos fatos. Após estacionar o carro no estacionamento de uma loja altamente frequentada pela classe “vipiana” pelotense (antes que perguntem, não, não fui comprar nada), percebi que outra família também acabara de fazer o mesmo cerca de 10 metros de distância. Achei estranha a insistência do motorista do carro em lançar o olhar em minha direção. Logo vi que se tratava de um político da Cidade. Adaptando o que dizia o saudoso Brizola: “um netinho da Ditadura”. Membro daqueles velhos partidos que insistem em trocar de nome com o intuito de apresentar-se como algo novo. E lá ia ele na minha frente. Dava dois passos e olhava para trás esperando o meu aceno de eleitor em potencial. Mais dois passos e olhar para trás novamente, até que chegou um momento em que percebeu que o seu “amor eleitoral” não seria correspondido.
Após atravessar toda a rua, confesso que tive um pensamento maldoso, daqueles que, se por acaso eu fosse católico, deveria imediatamente confessar ao padre. Na minha cena imaginária eu respondia grosseiramente à sua tentativa eleitoral. Diria que meu título eleitoral não constava na lista dos cidadãos pelotenses e que, caso constasse, o Trem (torcedor símbolo do Farroupilha), caso candidato, teria mais chance de levar o meu voto do que o ex e venerável edil. Aproveitando meu momento estritamente imaginativo e mal educado, fantasiosamente emendei: “E tu és um grande papai burguês e otário por não aproveitar nem o sábado para cuidar do próprio filho!” Sim, ele foi passear com o filho acompanhado da esposa (creio eu) e uma uniformizada babá em pleno sábado!!
Esse meu pensamento pode ter sido um pouco exagerado, mas foi ele quem provocou meu demônio...


Eis o culpado!

Demônio despertado, atento e desconfiado, entrei na loja e logo em seguida percebo outra família típica “vipiana” pelotense. O pai, “meião” levantado até o meio das pernas, olhava para tudo ao seu redor com olhar de superioridade. Na cabeça trazia um chapéu estilo “sou yanke de corpo e alma”. A camiseta estampava, em letras brancas garrafais, o nome da Cidade Pecado abaixo de uma conhecida marca norte-americana acusada de explorar mão de obra infantil em países asiáticos. Dessa vez meu demônio foi mais comedido. Apenas fez um breve comentário: “Que cara bem patético!”
Ao deixar o provocante recinto, meu lado infernal começou novamente a hibernar. A sorte é que já me aposentei das festas de Rio Grande, caso contrário meu amigo despertaria mais frequentemente...


* Palavras escritas ao som de Kick out the Jams (1968), do MC5.

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