Existem
mortes que aumentam ou que aliviam a dor. Existem mortes que trazem certezas ou
dúvidas sobre o futuro próximo. Algumas se tornam lamentos públicos, grandes
comoções capazes de mobilizar a população. Algumas sequer são percebidas, são
como brisas em meio a tempestades. Outras são comemoradas como símbolos de
liberdade e liberação de um regime opressor.
A
morte de Margaret Thatcher nos traz uma única certeza: nada de saudade.
Representante
do que existiu de pior no pensamento político-econômico ocidental dos anos 80,
a Dama de Ferro seguiu à risca o
paradigma que ela mesmo ajudou a modelar: a nefasta cartilha neoliberal. Em nome
da “proteção econômica” do país, a Primeira Ministra promoveu uma verdadeira
destruição das organizações trabalhistas inglesas. O combate violento às greves
tornou-se prática e rotina do Estado. O arrocho salarial tornou-se realidade e,
com ele, a desigualdade social, concepção comum à sociedade liberal, cristalizou-se
no decadente império. Ceifou qualquer tido de política social e proteção aos
mais necessitados. Enquanto trouxe a alegria para as elites britânica e
estadunidense, foi a mão-de-ferro ardente que queimou a prosperidade do cidadão
comum da Inglaterra.
Capa do single Sanctuary (1980) em "homenagem" à Dama de Ferro. Sofreu censura. |
Como
se não bastasse o estrago feito na ilha, os tentáculos opressores de Margaret Thatcher
também marcaram presença no continente sul-americano. Talvez a mais significativa
tenha sido a sua estreita relação com o nefasto Chile de Pinochet, ganhando em
troca, além de vantagens comerciais, um aeroporto nacional aberto às suas
intenções imperialistas na Guerra das Malvinas (auxílio ainda difícil de ser
digerido pelos hermanos argentinos).
Após
o afastamento do golpista chileno, ambos nutriram uma especial amizade,
incluindo chazinhos em Londres e carinhosos envios de flores (os espinhos foram
deixados ao povo chileno...) e chocolates para a anfitriã inglesa. Essa relação
amorosa foi tornada ainda mais pública quando, em outubro de 1988, Thatcher
teve a ousadia (cara-de-pau mesmo) de publicar no periódico The Times uma carta onde agradecia ao assassino
Pinochet por ter “salvado muitas vidas britânicas” durante o conflito nas
Malvinas. No mesmo documento, alega que a violência da ditadura chilena era
espelho da violência dos resistentes...
Em
outro episódio, Thatcher visitou Pinochet em Surrey (localidade inglesa onde o
ditador mantinha-se hospedado devido a seus problemas com os seguidos pedidos
de extradição) levando consigo uma equipe de televisão, em mais uma de suas
várias tentativas de salvar o assassino das garras da justiça espanhola através
da “limpeza” da imagem pública do acusado. Nessa ocasião, a britânica
sentenciou uma pérola teatral em frente a Pinochet: “Tenho plena consciência
que foi o senhor quem levou a democracia ao Chile..” Enfim, Thatcher foi a grande
paladina de um idoso Pinochet frequentemente perseguido pelos tribunais que
queriam levar um pouco de justiça aos milhares de mortos e desaparecidos
durante o regime militar chileno.
Afinidade comovente |
Demorou,
mas a mesma escuridão que tardou a chegar para o maldito Pinochet, finalmente
chegou para sua comparsa britânica. O inferno terá uma noite de festa. Já é
possível imaginar um estiloso jantar de gala, onde a Dama de Ferro e o Ditador Chileno colocarão suas conversas em dia
sob os olhares atentos de Ronald Reagan. Entre um gole e outro de um bom vinho francês, falarão sobre suas peripécias terrenas.
Contarão vantagens, darão risadas e, no final de tudo, concordarão que suas
vidas realmente valeram a pena, foram marcantes, marcadas. Enquanto Pinochet
cairá em risos ao lembrar os seus belos dribles na justiça espanhola e chilena
(com destaque para a farsa da cadeira de rodas ao chegar a Santiago no ano
2000) e de seus mais de 40.000 assassinatos. Para não ficar atrás da conversa,
Reagan se gabará com a proeza de seus caças F-111 que, no ano de 1986, em um
único ataque conseguiu matar 100 civis na ofensiva à Líbia. Deixará o escândalo
Irangate (venda de armas aos
iranianos para o financiamento dos contras
na Nicarágua) para um novo jantar, afinal, um bom estadista deve sempre ter algumas
boas cartas na manga. Após ouvir atentamente as vantagens contadas pelos queridos
comparsas, Margaret Thatcher deverá ser curta, mas definitiva ao declarar com o
mais fino humor britânico: “Apesar dos ‘bons números’, nenhum de vocês
conseguiu vencer um Oscar...”
* Palavras escritas ao som de Sanctuary (1980), da banda Iron Maiden.
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