Quando
tu passas a morar em outra cidade é comum vir um choque inicial. Esse choque
tende a ser bastante variável, podendo se expressar de forma mais clara nas
diferenças dos traçados urbanos, arquitetura, estrutura comercial, trânsito,
etc. No entanto, particularmente o que mais chama a atenção são os costumes, as
formas com que os moradores se relacionam com a população e a própria cidade.
Embora nem sempre incorporando as tradições e o jeito de ser dos moradores do
novo habitat, é comum acabarmos nos
acostumando com tal. Com o tempo, aquilo que antes estranhávamos e olhávamos
como algo de “outro mundo”, torna-se habitual, pouco chamativo.
Passei por tal
processo em Montevidéu (com morada mais curta) e Pelotas (alguns bons anos na
conta), antes de retornar à Cidade do Rio Grande. Neste último sábado, fiz uma
rápida passagem por Pelotas, o que suficiente para ter uma espécie de deja vu da minha antiga mudança para essa
cidade. Não há como negar: existe uma boa diferença entre o “ser pelotense” e o
“ser riograndino”. Essa clara diferença se torna ainda mais latente quando
tratamos das classes mais abastadas de ambas as cidades, da “nata”, da elite “vipiana”
(ainda não há imposto para quem cria palavras). Isso não quer dizer que uma é
melhor ou pior que a outra, mas elas se diferem na forma como se (re)apresentam
e se relacionam com os pares ou com as classes inferiores. Isso é fato! Algo
perceptível mesmo aos olhos mais desatentos.
Vamos
aos fatos. Após estacionar o carro no estacionamento de uma loja altamente
frequentada pela classe “vipiana” pelotense (antes que perguntem, não, não fui
comprar nada), percebi que outra família também acabara de fazer o mesmo cerca
de 10 metros de distância. Achei estranha a insistência do motorista do carro
em lançar o olhar em minha direção. Logo vi que se tratava de um político da
Cidade. Adaptando o que dizia o saudoso Brizola: “um netinho da Ditadura”. Membro
daqueles velhos partidos que insistem em trocar de nome com o intuito de
apresentar-se como algo novo. E lá ia ele na minha frente. Dava dois passos e olhava
para trás esperando o meu aceno de eleitor em potencial. Mais dois passos e
olhar para trás novamente, até que chegou um momento em que percebeu que o seu “amor
eleitoral” não seria correspondido.
Após
atravessar toda a rua, confesso que tive um pensamento maldoso, daqueles que,
se por acaso eu fosse católico, deveria imediatamente confessar ao padre. Na minha
cena imaginária eu respondia grosseiramente à sua tentativa eleitoral. Diria
que meu título eleitoral não constava na lista dos cidadãos pelotenses e que,
caso constasse, o Trem (torcedor símbolo do Farroupilha), caso candidato, teria
mais chance de levar o meu voto do que o ex e venerável edil. Aproveitando meu
momento estritamente imaginativo e mal educado, fantasiosamente emendei: “E tu
és um grande papai burguês e otário por não aproveitar nem o sábado para cuidar do
próprio filho!” Sim, ele foi passear com o filho acompanhado da esposa (creio
eu) e uma uniformizada babá em pleno sábado!!
Esse
meu pensamento pode ter sido um pouco exagerado, mas foi ele quem provocou meu
demônio...
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Eis o culpado! |
Demônio
despertado, atento e desconfiado, entrei na loja e logo em seguida percebo outra
família típica “vipiana” pelotense. O pai, “meião” levantado até o meio das
pernas, olhava para tudo ao seu redor com olhar de superioridade. Na cabeça
trazia um chapéu estilo “sou yanke de corpo e alma”. A camiseta estampava, em letras brancas garrafais, o nome da
Cidade Pecado abaixo de uma conhecida marca norte-americana acusada de explorar
mão de obra infantil em países asiáticos. Dessa vez meu demônio foi mais
comedido. Apenas fez um breve comentário: “Que cara bem patético!”
Ao
deixar o provocante recinto, meu lado infernal começou novamente a hibernar. A sorte
é que já me aposentei das festas de Rio Grande, caso contrário meu amigo
despertaria mais frequentemente...
* Palavras escritas ao som de Kick out the Jams (1968), do MC5.